Um conto de Marien Calixte
Extraído do livro Contos Desiguais
A estante os separa. Olham os títulos disponíveis. Seguem o ritmo da tarde de agosto, que se esvai lentamente. A mão direita dele toca os dorsos dos livros até chegar à extremidade da estante. Do outro lado, ela aciona a mão esquerda. Segue os livros num gesto idêntico ao do cliente que se encontra do outro lado da estante. Como se fora um bale de marionetes, as mãos deles retornam ao ponto inicial, no centro da estante. Retiram o mesmo livro: O Avesso e o Direito.
Como se houvessem combinado, seguram o livro admirando a capa. A curiosidade dela é mais ágil, logo folheia o livro de Albert Camus. Ele retira a sobre-capa e se detém na comparação com a capa interna protegida. Os movimentos dele despertam o interesse dela. Transfere sua atenção para o outro lado da estante e ri da coincidência. O cliente do outro lado da estante escolhera o mesmo livro que ela. Discretamente avalia que tipo de leitor será aquele que escolhera o autor predileto dela? Não parecia ser um leitor de Camus, a quem ela devotava paixão. Sim, não bastaria gostar do escritor Camus, havia mais que isso na relação entre esse autor e o leitor. Teria adivinhado o que ela pensava e olhou diretamente nos olhos dela, com uma curiosidade quase severa. Na opinião dele, Camus era leitura cerebral, e ela não tinha esse perfil. A silenciosa troca de preconceitos os incomodou e os fez retornar sua atenção para os livros.
O ato aleatório de folhear o livro conduziu-a ao capítulo com o título "Entre o Sim e o Não". Por sua vez, ele se entretém com a história do autor num café de Palma. Nesse momento, os pensamentos dela vagueiam pela livraria e se dá conta que P. não está ali, torturando-a com seus comentários bordados de deboche. Ela celebra o fato de não ter P. ao seu lado. Lembra-se que ele a impediu de ler Hemingway, Steinbecke Faulk-ner, só porque ele detestava autores norte-americanos e achava os franceses rigorosamente chatos. Portanto, ela readquirira sua liberdade vivendo por conta da sua vontade. Segurou com firmeza o livro de Camus, marcando com o polegar a página 67: "Se é verdade que os únicos paraísos são os que se perderam, sei como devo chamar essa coisa terna e desumana que existe hoje em mim..." Em outra ocasião ela teria chorado, mas a alegria predomina agora em seu coração.
De novo observa o cliente do outro lado da estante. Ela expande sua curiosidade feminina, imaginando que aquele deve ser um novo leitor interessado em Albert Camus. O desconhecido era mais jovem que ela, e isso tinha um peso de avaliação na categoria de leitores de um autor obcecado pela análise humana, segundo ela. O rapaz da livraria avisa que está na hora de fechar e os previne que está começando a chover. Lado a lado no balcão, sem a estante para separá-los, ele rompe o silêncio entre os dois: "Acho que tenho o livro adequado para uma noite de chuva", disse encarando-a como se a conhecesse há muito tempo, o tom de voz carregado de alguma outra intenção. Ela desviou-se de uma infrutífera colisão verbal, dando rumo ao conhecimento entre os dois. Perguntando se ele era um leitor assíduo de Camus. Ele avalizou o desafio, querendo saber se já lera O Estrangeiro. Ela riu, meneando a cabeça afirmativamente, dando-lhe o troco: "Uma dezena de vezes". Ela pede ao rapaz que não embrulhe o livro. Ele faz o mesmo pedido. Dirigindo-se a ela, justifica-se explicando que gosta de exibir o livro como se fora um companheiro, podendo consultá-lo a qualquer momento e onde estivesse.
Os dois exibem com prazer seus exemplares de Camus. Ele aponta para a capa do livro, chamando a atenção dela: "Lembra uma máscara de teatro, a metade da capa à esquerda é preta e, a outra metade, branca. Albert e "O Avesso" estão impressos à esquerda e, Camus e "e o Direito", estão à direita, acompanhados de um céu e nuvens acinzentadas. Concluem que a capa de Victor Burton é perfeita. Ela costura o diálogo de aproximação: "Além da capa, alguma coisa a mais chamou sua atenção para esse livro?" Ele entende que pisa chão minado e amplia o desafio. Abre o livro na página 107 e lê um trecho: ..."Agora não desejo mais ser feliz, e sim apenas consciente"... Ela considera que é um fértil ponto de discussão para começar uma amizade.
À porta da livraria ela observa que ele tem dúvida se enfrenta a chuva ou não. Pergunta se está de carro. A resposta é não. Ela amplia sua gentileza e lhe oferece uma carona. Ele aceita. Ela respalda sua cortesia:
- Gosta de Brahms?
- Debussy me parece mais adequado a Camus, diz ele com convicção.
- Não sou Françoise Sagan, mas amo Brahms,explica ela, lembrando-se de algum momento feliz do seu passado.
- Boa música é sempre bem-vinda, ele reforça.Os dois se protegem um no outro, correndo
sob a chuva cada vez mais forte.
Antes de fechar a porta, o rapaz da livraria olha os dois clientes em sua fuga e, diz baixinho, legitimando sua pressa:
- Para eles, bastaria apenas um livro.
Extraído do livro Contos Desiguais
A estante os separa. Olham os títulos disponíveis. Seguem o ritmo da tarde de agosto, que se esvai lentamente. A mão direita dele toca os dorsos dos livros até chegar à extremidade da estante. Do outro lado, ela aciona a mão esquerda. Segue os livros num gesto idêntico ao do cliente que se encontra do outro lado da estante. Como se fora um bale de marionetes, as mãos deles retornam ao ponto inicial, no centro da estante. Retiram o mesmo livro: O Avesso e o Direito.
Como se houvessem combinado, seguram o livro admirando a capa. A curiosidade dela é mais ágil, logo folheia o livro de Albert Camus. Ele retira a sobre-capa e se detém na comparação com a capa interna protegida. Os movimentos dele despertam o interesse dela. Transfere sua atenção para o outro lado da estante e ri da coincidência. O cliente do outro lado da estante escolhera o mesmo livro que ela. Discretamente avalia que tipo de leitor será aquele que escolhera o autor predileto dela? Não parecia ser um leitor de Camus, a quem ela devotava paixão. Sim, não bastaria gostar do escritor Camus, havia mais que isso na relação entre esse autor e o leitor. Teria adivinhado o que ela pensava e olhou diretamente nos olhos dela, com uma curiosidade quase severa. Na opinião dele, Camus era leitura cerebral, e ela não tinha esse perfil. A silenciosa troca de preconceitos os incomodou e os fez retornar sua atenção para os livros.
O ato aleatório de folhear o livro conduziu-a ao capítulo com o título "Entre o Sim e o Não". Por sua vez, ele se entretém com a história do autor num café de Palma. Nesse momento, os pensamentos dela vagueiam pela livraria e se dá conta que P. não está ali, torturando-a com seus comentários bordados de deboche. Ela celebra o fato de não ter P. ao seu lado. Lembra-se que ele a impediu de ler Hemingway, Steinbecke Faulk-ner, só porque ele detestava autores norte-americanos e achava os franceses rigorosamente chatos. Portanto, ela readquirira sua liberdade vivendo por conta da sua vontade. Segurou com firmeza o livro de Camus, marcando com o polegar a página 67: "Se é verdade que os únicos paraísos são os que se perderam, sei como devo chamar essa coisa terna e desumana que existe hoje em mim..." Em outra ocasião ela teria chorado, mas a alegria predomina agora em seu coração.
De novo observa o cliente do outro lado da estante. Ela expande sua curiosidade feminina, imaginando que aquele deve ser um novo leitor interessado em Albert Camus. O desconhecido era mais jovem que ela, e isso tinha um peso de avaliação na categoria de leitores de um autor obcecado pela análise humana, segundo ela. O rapaz da livraria avisa que está na hora de fechar e os previne que está começando a chover. Lado a lado no balcão, sem a estante para separá-los, ele rompe o silêncio entre os dois: "Acho que tenho o livro adequado para uma noite de chuva", disse encarando-a como se a conhecesse há muito tempo, o tom de voz carregado de alguma outra intenção. Ela desviou-se de uma infrutífera colisão verbal, dando rumo ao conhecimento entre os dois. Perguntando se ele era um leitor assíduo de Camus. Ele avalizou o desafio, querendo saber se já lera O Estrangeiro. Ela riu, meneando a cabeça afirmativamente, dando-lhe o troco: "Uma dezena de vezes". Ela pede ao rapaz que não embrulhe o livro. Ele faz o mesmo pedido. Dirigindo-se a ela, justifica-se explicando que gosta de exibir o livro como se fora um companheiro, podendo consultá-lo a qualquer momento e onde estivesse.
Os dois exibem com prazer seus exemplares de Camus. Ele aponta para a capa do livro, chamando a atenção dela: "Lembra uma máscara de teatro, a metade da capa à esquerda é preta e, a outra metade, branca. Albert e "O Avesso" estão impressos à esquerda e, Camus e "e o Direito", estão à direita, acompanhados de um céu e nuvens acinzentadas. Concluem que a capa de Victor Burton é perfeita. Ela costura o diálogo de aproximação: "Além da capa, alguma coisa a mais chamou sua atenção para esse livro?" Ele entende que pisa chão minado e amplia o desafio. Abre o livro na página 107 e lê um trecho: ..."Agora não desejo mais ser feliz, e sim apenas consciente"... Ela considera que é um fértil ponto de discussão para começar uma amizade.
À porta da livraria ela observa que ele tem dúvida se enfrenta a chuva ou não. Pergunta se está de carro. A resposta é não. Ela amplia sua gentileza e lhe oferece uma carona. Ele aceita. Ela respalda sua cortesia:
- Gosta de Brahms?
- Debussy me parece mais adequado a Camus, diz ele com convicção.
- Não sou Françoise Sagan, mas amo Brahms,explica ela, lembrando-se de algum momento feliz do seu passado.
- Boa música é sempre bem-vinda, ele reforça.Os dois se protegem um no outro, correndo
sob a chuva cada vez mais forte.
Antes de fechar a porta, o rapaz da livraria olha os dois clientes em sua fuga e, diz baixinho, legitimando sua pressa:
- Para eles, bastaria apenas um livro.
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